A decisão de invadir a Ucrânia está a sair muito cara ao presidente da Rússia. Vladimir Putin é, por estes dias, alvo de todas as críticas, dentro e fora de portas, e já há quem admita que esta guerra contra o povo irmão pode ser “o princípio do fim do putinismo”.
Putin dirige os destinos da Rússia há mais de 20 anos com mão de ferro. Uma mão que endureceu ainda mais nos últimos tempos, com o silenciamento dos opositores, alguns dos quais foram até vítimas de tentativas de envenenamento que são atribuídas a agentes do KGB.
Mas a ditadura de Putin está a ser abalada por uma guerra fratricida que não está a correr tão bem como o dono e senhor da Rússia esperaria.
Antes da invasão à Ucrânia, acreditava-se que o exército russo teria poderio para conquistar o país vizinho em poucos dias. Mas, volvida mais de uma semana desde o início da invasão,
os irredutíveis ucranianos resistem.
Entretanto, sucedem-se as notícias sobre a desmoralização dos soldados russos no terreno, com notícias sobre falta de alimentos, deserções e até sabotagens dos próprios veículos para evitar que avancem Ucrânia adentro.
Apesar disso, ainda é provável que Putin conquiste a Ucrânia,
nomeadamente controlando o coração do país, a capital Kiev. Contudo, é
já evidente para muitos especialistas políticos de que o presidente russo perdeu a guerra.
Para o jornalista José Milhazes, profundo conhecedor da realidade da
Rússia, onde trabalhou durante vários anos, “a decisão desastrosa de
Vladimir Putin e dos seus generais de invadir e anexar a Ucrânia poderá
vir a ser o princípio do fim do putinismo“, conforme escreve num artigo de opinião no Observador.
“A Rússia é propensa à revolução”
“A Rússia é propensa à revolução”, lembra, por seu turno, o deputado do Partido Trabalhista irlandês Brendan Howlin em declarações ao jornal Independent.
“Chega um momento em que o homem ou a mulher forte falha e é varrido da Rússia e só temos que esperar que esse dia não esteja muito longe, mas, nesse entretanto, estamos em terreno perigoso”, nota Howlin.
O que mais preocupa o deputado irlandês é que, num cenário de desespero, Putin possa “retaliar com armas nucleares”, o que sublinha quão “vulneráveis estão as coisas”, como diz.
“Para a Rússia, este tipo de guerras não só terminam sem êxito, mas, com frequência, culminam numa catástrofe política“,
salienta, por seu lado, o professor e historiador Andrei Zubov,
despedido da principal academia diplomática da Rússia, em 2014, pela sua
oposição à anexação da Crimeia, lembrando as lições do passado em
declarações divulgadas pelo The Washington Post.
“Sabemos qual foi a atitude da população depois da derrota na guerra russo-japonesa de 1905 [que levou à primeira revolução da Rússia]. Poderemos ver o mesmo agora. Poderemos enfrentar uma situação em que o povo não aceite esta aposta do regime“, avança Zubov.
Mas será que isto significa que pode haver um golpe de Estado contra Putin? Ninguém o sabe, mas os opositores ao regime estão a aproveitar o momento para incentivar a população ao protesto, como já fez Alexei Navalny que está detido há quase dois anos pelas suas posições contra Putin.
Navalny apelou aos russos, através do Instagram, para que organizem
protestos diários contra a invasão da Ucrânia. “Não posso, não quero e
não vou ficar calado”, argumenta, constatando que “a Rússia não é o Putin”.
“Rússia vai pagar por estes crimes de guerra”
O Kremlin proibiu os protestos contra a guerra, mas milhares de
pessoas têm saído à rua para se manifestarem, pedindo o fim da invasão. A
polícia já deteve milhares de pessoas.
Até figuras próximas de Putin começam a virar-lhe as costas nesta questão, como é o caso do actual dono do Chelsea, Roman Abramovich, que já disse que vai vender o clube e distribuir as receitas dessa venda pelas vítimas da guerra na Ucrânia.
Entretanto, há figuras políticas que também se juntam ao grito
mundial contra a guerra. O antigo ministro russo dos Negócios
Estrangeiros, Andrey Kozyrev, apelou aos diplomatas russos para se demitirem “em protesto”.
“Virá o tempo em que a Rússia terá de pagar reparações à Ucrânia,
tal como a Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial. Percebo que se
possa pagar por uma vida. Mas por futuras gerações, por reconstruir
cidades, quem pensam que vai pagar por estes crimes de guerra? A Rússia
vai”, salienta Kozyrev citado pela jornalista Bianna Golodryga da CNN.
No meio deste tumulto, a grande dúvida é saber o que “Putin vai fazer agora”, como repara Brendan Howlin no Independent. “Ele é capaz de tudo”, mas “não esperava que a Europa se unisse desta forma”, analisa o deputado irlandês.
Putin “vê-se como uma Catarina, a Grande, moderna,
um construtor do império russo e um espalhador do poder russo. Ele quer
preservar isso e não ser lavado pela história”, destaca ainda Howlin. O
presidente russo arrisca-se a ser lembrado para a eternidade pelos
piores motivos.
Atletas russos falam contra a guerra
Para já, Putin é o culpado de uma mobilização sem precedentes
contra um Estado por causa de uma guerra. E o desporto está a ser uma
das faces mais visíveis deste movimento, até porque é uma área que tende
a assumir uma posição de neutralidade política.
Neste caso, Federações e Associações de diferentes modalidades
desportivas já suspenderam a Rússia dos seus torneios numa tomada de
posição dura que causa sérios prejuízos aos atletas do país. Talvez por
isso, porque já têm pouco a perder, se assiste a uma mobilização “sem precedentes” de atletas russos contra a guerra, como repara a investigadora francesa Carole Gomez, directora de pesquisa em geopolítica do desporto, em declarações ao Le Monde.
“Se, antes, podia haver na Rússia tomadas de posição isoladas contra o
poder, eram rapidamente denunciadas, marginalizadas ou até sancionadas.
Hoje em dia, dado o peso do nome [de alguns atletas], pode ser estabelecido um equilíbrio de poder“, aponta Carole Gomez.
A actual melhor tenista russa, Anastasia Pavlyuchenkova, 14ª do mundo, já veio a público colocar-se, claramente, contra a invasão.
“Representei a Rússia toda a minha vida. Esta é a minha casa e o meu
país”, começa por notar Pavlyuchenkova. “Estou em medo total, tal como
os meus amigos e família. Mas não tenho medo de assinalar, claramente, a
minha posição. Sou contra a guerra e a violência“, acrescenta depois numa publicação nas suas redes sociais.
“As ambições políticas ou pessoais não podem justificar a violência”, atira ainda num ataque directo a Putin. “Isto tira-nos o nosso futuro, mas também o futuro das nossas crianças”, conclui.
Também o tenista russo Daniil Medvedev deu um tímido sinal de que esta guerra não lhe agrada, confessando as “emoções confusas” por ter alcançado o lugar número 1 do ténis mundial na semana em que aconteceu a invasão da Ucrânia.
Já Andrey Rublev, número 6 do ténis mundial, resumiu a sua posição a um “não à guerra, por favor” que escreveu numa câmara durante um torneio no Dubai.
O avançado Fedor Smolov, que alinha no Dínamo de Moscovo, foi o primeiro futebolista da Selecção Russa a criticar a decisão de Moscovo. “Não à guerra”, escreveu no Instagram a par do emoji de um coração partido e de uma imagem com fundo negro.
A lenda do voleibol russo, a antiga atleta Ekaterina
Gamova, dupla campeã europeia e mundial, assumiu uma linguagem dura e
abertamente crítica, falando de uma “página vergonhosa” que “permanecerá para sempre na história” da Rússia.
“O nosso governo tem de parar o mais depressa possível. Poderia ficar calada? Sim, poderia. Mas eu tenho vergonha e medo. A Rússia deve saber que há muitas pessoas que são contra o que está a acontecer“, sublinhou ainda Gamova.
“Uma pedra no sapato” de Putin
Estas posições de atletas e ex-vedetas do desporto russo têm um peso importante porque Putin “fez do desporto um instrumento de poder”, como nota o investigador suíço Lukas Aubin, cuja tese de doutoramento se centrou nesta ideia da “Sportokratura”.
Em declarações ao jornal suíço Le Temps, Aubin reforça que os atletas mais conhecidos estão a tornar-se “a face visível da contestação política
que existe na Rússia”. “Já não estamos em 2014, quando uma grande
maioria da população apoiou a anexação da Crimeia”, acrescenta.
O investigador repara que Putin “mostrou-se a fazer judo, hóquei ou musculação” e que “colocou o desporto ao serviço da influência da Rússia”.
“Em questões de política interna, usou-o para fortalecer o patriotismo do povo. É uma ferramenta muito importante aos olhos de Putin e de que hoje está privado”, constata ainda.
Em 2000, quando Putin chegou ao poder, o desporto “era um campo de ruínas”. “Vinte e dois anos depois, a Rússia sediou todos os maiores eventos desportivos,
personalidades russas juntaram-se a muitos órgãos, empresas russas
financiaram clubes e organizações no estrangeiro”, o que resultou numa
“forte presença” a nível mundial, atesta ainda Aubin.
Assim, as sanções impostas ao desporto russo, nomeadamente a exclusão da Selecção de Futebol do Mundial 2022, têm um peso ainda maior no isolamento da Rússia.
Nesta altura, esta questão desportiva, é apenas “uma pedra no sapato” de Putin, mas “esta pedrinha vai incomodá-lo quando a situação [de guerra] se acalmar”, prevê Aubin.
Antes da invasão à Ucrânia, os atletas viam-se forçados ao “silêncio” para defender “os seus próprios interesses” desportivos, repara também Aubin.
“O mundo desportivo russo temia Putin antes da guerra”, mas, “agora,
pergunta-se o que mais deve temer”, pois, “para um atleta, as sanções
internacionais têm consequências muito concretas“, destaca.
Na verdade, as sanções podem ter danos irreparáveis
na carreira de alguns atletas, pois o tempo passa e a idade não perdoa.
Portanto, o feitiço pode virar-se contra o feiticeiro e o que foi “um
instrumento de poder” pode acabar por contribuir para a queda de Putin.
https://zap.aeiou.pt/golpe-de-estado-putin-465388