A Austrália conseguiu controlar a propagação do novo
coronavírus, aplicando medidas restritas quanto às entradas e saídas do
país. Contudo, apesar do sucesso no combate à covid-19, mais de 35.000
residentes ficaram retidos no estrangeiro, esperando pela oportunidade
de retornar a casa.
É o caso do casal David e Kate Jeffries, que viajaram da sua casa, em
Perth, na Austrália, para uma pequena cidade no centro do Canadá, a 26
de fevereiro, para cuidar da mãe de David, diagnosticada com cancro nos
ovários, segundo relata um artigo de A. Odysseus Patrick, publicado na quinta-feira no Washington Post.
Embora tivessem ouvido falar do coronavírus, não estavam muito
preocupados. Naquela altura, o Canadá tinha registado apenas 12 casos de
infeção e a família tinha programado voltar para casa quatro semanas
depois. Atualmente, o casal está num casa arrendada, impossibilitado de retornar
a Perth por causa das restrições de entrada na Austrália, que deixou
dezenas de milhares de cidadãos australianos e residentes no exterior.
“Não queremos levar a covid-19 novamente para o nosso país, mas temos
o direito de voltar”, disse David Jeffries numa conversa através da
plataforma Zoom, a partir da sua atual casa, em Portage la Prairie,
Manitoba, no Canadá.
Não existem dados seguros sobre o número de pessoas retidas devido
às medidas adotadas pelo Governo australiano durante a pandemia. No
final de março, mais de 50 mil norte-americanos ficaram retidos no
exterior, quando as viagens internacionais quase cessaram, informaram na
época as autoridades dos Estados Unidos (EUA).
A Austrália, contudo, tem das mais rígidas restrições de fronteira
– os residentes precisam de permissão para sair, e, desde 20 de março,
só é permitida a entrada a cidadãos, residentes e grupos específicos. As
chegadas são limitadas a cerca de oito mil pessoas por semana, tendo
estas que se isolar em hotéis durante 14 dias, por sua conta.
Em janeiro, cerca de 2,3 milhões de pessoas viajaram para a Austrália. Em setembro, o número baixou para 16.720.
Um colapso semelhante em viagens ocorreu na Ásia, onde as restrições
são mais duras do que nos EUA e na Europa, embora sem a quarentena
rígida da Austrália. O número de visitantes no Japão passou de 2,7
milhões em janeiro para 13.700 em setembro; na Coreia do Sul passou de
1,3 milhão para 64.000 no mesmo período e no Vietname, de 2 milhões para
13.800, de acordo com a empresa de pesquisa CEIC Data.
Esta semana, o estado mais populoso da Austrália, Nova Gales do Sul,
permitiu que estádios chegassem à sua capacidade máxima e que os
ginásios e bares reabrissem. Para sábado está programado que seja
levantada a última restrição nas fronteiras. Especialistas acreditam,
porém, que permitir o regresso dos residentes que estão no exterior pode
colocar em risco a resposta à pandemia, uma das mais bem-sucedidas do mundo.
“Não há justificação para apressar esse retorno e passar para um
sistema de quarentena inferior”, disse John Kaldor, epidemiologista da
Universidade da Nova Gales do Sul. “Foi o sistema de quarentena que nos
permitiu voltar a um estado semi-normal”.
Com alguns aviões com destino à Austrália quase vazios por causa das
restrições, passageiros relataram que as companhias aéreas
incentivaram-nos a comprar bilhetes para a primeira classe ou para a
classe executiva, que podem chegar aos 15.000 dólares (cerca de 12,3 mil
euros) nos EUA ou na Europa, potenciando as hipóteses de repatriamento.
Ao chegarem, os viajantes são encaminhados por agentes ou guardas militares até hotéis específicos, onde não podem sair dos seus quartos.
“Acho que a situação está a ficar muito difícil e que algo deve ser
feito visto que os direitos dos indivíduos estão a ser violados”, disse
Laura A. Dickinson, professora da Escola de Direito da Universidade
George Washington, especializada em Direitos Humanos e Segurança
Nacional.
Em teoria, os australianos retidos no estrangeiro poderiam apelar
para a ajuda da Organização das Nações Unidas (ONU). Em 1980, a
Austrália ratificou o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos, que garante aos cidadãos o direito de entrar nos seus próprios países.
O Comité de Direitos Humanos da ONU, presidido por um diplomata
egípcio, pode decidir sobre as queixas apresentadas ao abrigo do
tratado. O processo, no entanto, é lento e não há sinais de que alguém
pretenda usá-lo contra o Governo australiano, que transferiu a
responsabilidade para os governos estaduais, que precisam concordar com o
número de espaços disponíveis para a quarentena.
O primeiro-ministro Scott Morrison disse em outubro que queria levar
os cidadãos australianos de volta para o país até ao Natal, algo que,
segundo o artigo, é pouco provável. A 26 de novembro, as autoridades
indicaram que número de pessoas à espera para retornar ao país era
36.875.
No Canadá, a família Jeffries planeava voltar para a Austrália a 29
de março. Mas a 17 desse mês, o governo australiano aconselhou os
residentes a voltarem imediatamente. Um dia depois, a fronteira do Canadá com os EUA foi fechada. Os voos do casal foram cancelados. Tentaram, sem sucesso, embarcar em abril.
Alugaram então um apartamento perto da casa da mãe de David. A 12 de
novembro, o governo local impôs restrições de “código vermelho”,
impedindo a família de sair de casa, até mesmo para ver a mãe de David,
que mora a alguns quarteirões.
Embora tenham permissão legal para voltar para casa, os riscos são
consideráveis. David tem nacionalidade canadiana, embora seja residente
permanente na Austrália há 20 anos. Mas os vistos de turista da sua
esposa e do filho já expiraram.
Se tentarem chegar à Austrália através dos EUA ou do Oriente Médio e
não puderem embarcar para Sydney ou Perth, a família teme ficar retida
nos Emirados Árabes Unidos ou em Los Angeles.
Kate precisa de regressar à Austrália antes que a sua licença de
maternidade acabe, em fevereiro. David trabalha remotamente para uma
empresa de software de Perth. “Ficar preso por dias ou semanas num aeroporto seria o nosso pior pesadelo”, disse.
O estado de Victoria voltou a aceitar chegadas internacionais na
segunda-feira, aumentando a capacidade de quarentena. No entanto, outros
estados continuam relutantes em aceitar mais pessoas, temendo serem
responsabilizados por algum surto.
O último caso de coronavírus registado na Austrália foi a 03 de
dezembro, um funcionário de um hotel onde viajantes estrangeiros ficam
em quarentena. Entre os que estão em quarentena, foram identificados 62
casos na semana passada.
https://zap.aeiou.pt/365286-365286