As marchas das mulheres fazem repetidas referências às bruxas que foram perseguidas como símbolos feministas. O TikTok tem também alimentado o fascínio com a magia.
O dia das bruxas até já pode ter passado, mas, para alguns, todos os dias são dias para celebrar as rainhas do oculto. Com o crescimento nos últimos anos do movimento Me Too, muitas mulheres também têm reclamado a sua identidade enquanto mestres da magia e têm aumentado as referências a caças às bruxas em protestos.
Recentemente, nas manifestações nos Estados Unidos contra a
lei do aborto no Texas, também se têm multiplicado os cartazes onde se pode ler: “Somos as bisnetas das bruxas que não conseguiram queimar“.
Mas afinal, qual é a ligação entre a exaltação da bruxaria e o feminismo? Para a fotógrafa e autora do livro Major Arcana: Portraits of Witches in America, publicado em 2020, Frances F. Denny, esta relação não tem nada de coincidência.
“Se olharmos para a história do feminismo nos ano 60 e 70 e a história da feitiçaria moderna, andam de mãos dadas. As ondas acontecem ao mesmo tempo”, explica ao
The Independent. Apesar de poder ser praticada por pessoas de todas as identidades de género, os enlaces históricos entre a bruxaria e a feminilidade são difíceis de ignorar. As “bruxas” eram muitas vezes apenas mulheres que não se enquadravam nos critérios da época, sejam esses sociais, religiosos ou médicos.
A luta contra o genocídio cultural dos rituais religiosos de povos colonizados, como o hoodoo e voodoo, também está intimamente ligada à história das caças às bruxas, com muitas destas tradições a serem associadas até aos dias de hoje á feitiçaria e ao oculto.
Enquanto fazia pesquisas para o seu primeiro livro em 2014, Denny descobriu que um dos seus antepassados tinha sido um juiz durante os julgamentos das bruxas em Salem, no Massachusetts, onde este tipo de julgamentos foi recorrentes em 1692.
A tradição de caça às bruxas em Salem até acabou por ser um atracção turística na vila. Mais de 200 pessoas foram acusadas, tendo 30 sido condenadas. Destas, 19 foram enforcadas, sendo a maioria mulheres.
Os julgamentos marcaram uma das eras mais tenebrosas das então colónias britânicas nos EUA, com o pânico puritano a ser alimentado por condições precárias de higiene e saúde — com um surto de varíola, um Inverno muito frio e instabilidade política local — que aumentaram ainda mais a paranóia sobre a mão do bruxedo nas dificuldades vividas.
Mas esta paranóia ainda persiste nos tempos modernos. Vários estados norte-americanos continuavam a punir judicialmente a bruxaria na década de 70. Uma das mulheres fotografadas por Denny, Zsuzanna Budapest, foi até presa na Califórnia por ler cartas de tarot em 1975 a uma agente de polícia à paisana. Depois de nove anos em lutas legais, conseguiu reverter a sentença com base na liberdade religiosa.
Uma das acusadas, Mary Bliss Parsons, também era uma familiar de Frances F. Denny. Apesar de não ter sido condenada, a acusação e as suspeitas acompanharam-na para o resto da vida. Foram estas descobertas que motivaram a fotógrafa a fazer uma viagem pelos EUA em busca das bruxas da idade moderna, entre os 20 e 85 anos.
Os retratos estão agora expostos em Salem, no Peabody Essex Museum, que é casa de muitas relíquias dos julgamentos do século XVII, como mandados de busca, cartas e até um vestido do estilista Alexander McQueen feito em honra da sua antepassada que também foi executada.
Outra das protagonistas do livro e da exposição em Salem é Shine Blackhawk, uma bruxa de Los Angeles que aprendeu as artes do oculto com a sua avó, uma mulher chamada Carlyn A Grande. Na casa dos 20 anos, a feiticeira conformou-se com a sua bruxaria “eclética”. “Sabia que tinha este poder desde criança. Apesar de não usar a palavra “bruxa” na altura, eu sabia que pertencia a algo diferente, um outro mundo. E passei muito tempo nesse mundo diferente”, confessa.
“Ter estas bruxas modernas ali para todas as mulheres cujas vozes foram roubadas há 300 anos é uma das coisas mais importantes de que já fiz parte. Os julgamentos foram uma parte muito difícil da nossa história, mas sermos entrelaçadas e ligadas juntas; é quase como se essas mulheres continuassem a respirar, a viver, a dançar e mexer-se através de nós. É épico fazer pare disso” considera Blackhawk sobre a exposição em Salem.
A introdução de Major Arcana refere também que “a imagem da bruxa é um dos primeiros exemplos da propaganda generalizada contra as mulheres”. “Algumas disseram-me que viram a sua identidade enquanto bruxas usada contra elas em processos de divórcio pelos ex-maridos. Essa foi a maior chamada para eu perceber que ainda há muito a perder com este projecto, com esta palavra. Ainda é tabu. Ainda é perigosa“, explica Denny ao jornal britânico.
A ascensão do WitchTok
A identificação com a feitiçaria tem crescido a pique nos últimos anos nos EUA, mas a reivindicação feminista do termo já não é de agora. Há 53 anos, um grupo de manifestantes autointituladas W.I.T.C.H. criaram um “feitiço” no Halloween contra Wall Street.
Vestidas a rigor todas de preto e com chapéus em bico, as mulheres esgueiraram-se entre as ruas apertadas de Manhattan durante a noite para entrarem na bolsa de Nova Iorque, onde espalharam cola nas trancas das portas. Na manhã seguinte, os bolsistas não conseguiam entrar e o índice caiu 13 pontos.
“Não nos considerávamos bruxas verdadeiras, mas usamos o termo por causa daquilo que representava: uma mulher poderosa“, afirmou Robin Morgan, uma das organizadoras da manifestação, que explica ao
The New York Times que o acrónimo W.I.T.C.H. significava Women’s International Terrorist Conspiracy From Hell — Conspiração Terrorista Internacional do Inferno de Mulheres.
Já nos últimos anos, a popularidade das bruxas tem subido, seja com a obsessão millennial com o tarot ou a divulgação de podcasts e painéis de discussão sobre a feitiçaria, e já vários estudos, se debruçaram sobre o tema. Em 2014, o Pew Research Center concluiu que a identificação formal com a bruxaria está a crescer imenso nos EUA, com quase 1,5 milhões de feiticeiros.
Mas as redes sociais, especialmente o TikTok, também são um grande factor na recente explosão no fascínio com bruxas. A hashtag #WitchTok conta já com mais de 20.7 mil milhões de visualizações. Como termo de comparação, a hashtag #Biden tem apenas 13.8 mil milhões de visualizações.
Com vídeos curtos, o formato favorece conteúdo com um ritmo rápido e visualmente apelativo. Através de velas, garrafas, incenso, cristais, ervas, e roupas e maquilhagem dramáticas, cria-se um ambiente apropriado para pequenos tutoriais de feitiços que podem ser facilmente imitados pelos espectadores. Os alvos mais comuns dos feitiços parecem ser a busca pelo amor, o dinheiro, a saúde ou a vingança.
Os vídeos interactivos, onde os tabuleiros Ouija, as cartas de tarot, ou os pêndulos respondem a uma questão feita por quem vê são também muito populares, explorando o algoritmo ao máximo ao encorajar à participação da audiência.
No entanto, nem todos são fãs ou crentes no oculto. Há também utilizadores, geralmente cristãos, que partilham vídeos onde se mostram indignados contra os males da magia. Mas enquanto os mais religiosos acreditam que a feitiçaria é tão poderosa que vai valer às bruxas um lugar eterno no Inferno, há outros TikTokers mais cépticos, que se dedicam à desmistificação dos vídeos publicados por feiticeiros auto-intitulados.
Mas há ainda um terceiro grupo – as feiticeiras mais experientes que levam o culto da magia a sério e como uma carreira e que se dedicam ao estudo da teoria, história e complexidade dos rituais e dos feitiços.
O seu conteúdo mais educativo e longo já não é tão apetecível para a audiência do TikTok, mas ocasionalmente as mestres da magia tornam-se virais quando corrigem e educam as “bruxas bebés”, por vezes mostrando a sua frustração com questões sociais gerais que também se aplicam à feitiçaria, como a apropriação cultural.
A bruxa Georgina Rose tenta fazer a ponte entre o conteúdo educativo e o humor típico dos seus contemporâneos da geração Z, tanto no TikTok, como no Twitter e no YouTube, para lutar contra o “crescimento do anti-intelectualismo” entre os jovens nos “espaços ocultos online”, com a hashtag #DefendOccultBooks. O objectivo é atrair novos interessados no mundo da magia.
A tradição já existe há séculos e ainda persiste com a tecnologia, não havendo nenhum sinal de abrandamento na popularidade do bruxedo. De mãos dadas, a luta feminista alia-se à feitiçaria e continua em busca da igualdade para as mulheres, tanto bruxas como as comuns das mortais.
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