O líder russo não contava com uma tomada de posição tão forte por parte do Ocidente nem com o heroísmo mediático do Presidente ucraniano, que continua a inspirar a resistência no país e a ganhar a batalha da comunicação, pelo menos para já, segundo o Expresso.
“Estamos a assistir a um novo tipo de guerra”. A frase é de Sandra Fernandes, especialista em relações entre a União Europeia e a Rússia.
O acompanhamento mediático ao segundo de uma guerra não é novidade – aconteceu em 1991 na invasão do Iraque — mas desta vez “tem outro significado, dada a condenação política da agressão de Putin“, aponta a investigadora da Universidade do Minho.
A comunicação é central para entender o que se está a passar na Europa: enquanto que a Rússia está a apostar na sua máquina de propaganda já bem oleada, a Ucrânia está a garantir a resistência interna e o apoio da comunidade internacional através de uma comunicação moderna e auxiliada pelas novas tecnologias.
Do lado russo, a estratégia de comunicação tem um foco: o medo. “O Kremlin está a seguir uma linha muito tradicional da propaganda: incutir o medo tanto no povo ucraniano como no mundo ocidental para atingir os objetivos”, aponta Nelson Ribeiro, investigador de média na Universidade Católica.
Muito antes do início da invasão, o discurso interno de Putin foi construído à volta da ideia de que a Ucrânia é uma ameaça para a Rússia. Para isso, o Kremlin agitou o fantasma de um genocídio russo no país e acusou o governo ucraniano de ser nazi – duas acusações sem adesão à realidade.
“Os espectadores da televisão russa na semana passada provavelmente ficaram a pensar que o país está apenas envolvido numa pequena operação [militar] no sul da Ucrânia, e que o governo ucraniano tem o objetivo de provocar uma guerra maior”, disse a analista política independente Tatyana Stanovaya ao The Guardian.
“É totalmente possível que eu apoiasse Putin e a sua operação militar [se só visse a televisão russa]”, acrescentou.
“Para justificar o ataque, Putin está a apresentar os inimigos como uns bárbaros que não merecem respeito”, resume Nelson Ribeiro – um processo que já aconteceu noutros conflitos bélicos como a Segunda Guerra Mundial e a Guerra no Iraque (de ambos os lados).
Nos últimos dias, o regulador russo da comunicação social apertou ainda mais o cerco à cobertura mediática do conflito: proibiu o uso de expressões como “guerra”, “invasão” ou “ataque”, condicionou o acesso a várias redes sociais como o Twitter e o Facebook e ameaçou cortar a ligação à Wikipédia.
Ao mesmo tempo, o parlamento russo aceitou uma proposta de lei que prevê penas de prisão até 15 anos para quem “criticar” o exército russo.
Fora de portas, Putin e os seus aliados também têm subido o tom – inclusive reforçando a ameaça de um ataque nuclear.
“Externamente, parece-me claro que a estratégia da Rússia não está a ser bem sucedida. E mesmo internamente, apesar das limitações à liberdade de imprensa, vai chegando alguma informação através de meios alternativos e há muitas franjas da sociedade russa que não estão a comprar esta narrativa [de Putin]”, nota Nelson Ribeiro.
Esta semana, o historiador e tradutor Ian Garner apontou para uma ideia semelhante no Twitter: “Tenho estado a monitorizar as reações russas na rede social e estou mais convencido que o regime de Putin sobrestimou a sua habilidade de vencer a guerra de propaganda”, afirmou o académico que estudou e viveu em São Petersburgo.
Na rede social VK, um clone russo do Facebook controlado pelo Kremlin, têm surgido várias publicações críticas da guerra.
“O sentimento antiguerra existe, e uma parte desse sentimento está a sentir-se nas ruas”, analisava Garner, acrescentando que a narrativa histórica antinazi de Putin – para recuperar o sentimento nacionalista da Segunda Guerra Mundial – pode não estar a ser muito eficaz junto da sociedade russa.
Além disso, as consequências das sanções e boicotes internacionais já estão a preocupar a população: “As pessoas no extremo oriente russo, onde os preços da comida já estão a disparar, não estão a entrar em pânico – mas também não estão propriamente felizes”, sinalizou Garner.
Resumindo: “[Há] uma máquina de propaganda estagnada que sabe criar o caos e destruir, especialmente o Ocidente. Mas é uma máquina de propaganda de um império: não é ágil e não sabe responder à atualidade e aos esforços ucranianos e ocidentais”, garantiu Garner.
Ucrânia: travar a guerra (também) nas redes sociais
Do outro lado está a Ucrânia, para já em vantagem na batalha da comunicação. Muito do mérito é do seu Presidente.
Volodymyr Zelensky é visto em todo o mundo como um líder ao lado do seu povo, algo que não se verificava antes do início do conflito.
“Basicamente, ele era o líder mais popular num grupo de líderes impopulares. Agora é um ícone global”, apontou no Twitter P.W. Singer, cientista político norte-americano especializado em guerras do século XXI.
A estratégia de Zelensky é completa e já teve vários momentos altos: rejeitou a “boleia” dos Estados Unidos para sair do país, continua sem arredar pé de Kiev, está em contacto regular com altos responsáveis políticos ocidentais e é rápido a dar conta disso, mesmo nas redes sociais.
Além disso, o governo ucraniano tem feito um trabalho regular para tentar desmobilizar o inimigo, tendo até criado um site para dar informações aos familiares dos soldados russos que foram enviados para a Ucrânia.
“Há muito tempo que ninguém falava com o povo russo com tanto amor“, desabafou Ilya Krasilshchik, um ex-jornalista russo.
Zelensky é um comediante de profissão feito chefe de Estado que é capaz de manter o humor enquanto olha a guerra nos olhos.
“Uma das variáveis a ter em conta é a aposta da Ucrânia em comunicar com a opinião pública ocidental. E Bruxelas foi à boleia desta dinâmica”, nota Nelson Ribeiro.
A figura de um herói mobilizou a população ucraniana e “colocou pressão” nos governos europeus.
“Ou os regimes democráticos mostravam que estavam disponíveis para defender determinados valores que dizem ser os seus, ou abriam terreno fértil aos populistas”, defende o investigador.
Inicialmente, a UE deu uma resposta dúbia à agressividade russa – mas rapidamente passou para o lado ucraniano, surpreendendo os especialistas.
Já depois de aplicar sanções económicas à Rússia, Bruxelas suspendeu dois canais televisivos controlados pelo Kremlin. Grandes empresas tecnológicas, como a Apple e a Google, fizeram o mesmo.
“Creio que a forte tomada de posição ocidental para limitar a expansão da narrativa russa surpreendeu Putin, o que não deixa de ser curioso”, diz Nelson Ribeiro.
Sabemos mesmo o que está a acontecer?
No primeiro dia do ataque, o mundo chorou a morte de um grupo de soldados ucranianos que resistiu ao avanço do exército russo na ilha Snake.
A marinha ucraniana corrigiu a informação algum tempo depois: os soldados não tinham morrido e estavam “vivos e de boa saúde”.
Paradoxalmente, a guerra com a maior cobertura mediática de sempre é também a mais difícil de cobrir.
“Estamos numa guerra de informação e contra-informação, e é muito difícil distinguir entre informações reais e produzidas por ambos os lados para influenciar a opinião pública”, alerta Nelson Ribeiro. Os exemplos são vários: desde números e relatos errados, até imagens anteriores à guerra ou tiradas fora de contexto.
As redes sociais são o palco principal da desinformação, mas também a combatem: “A validação das notícias está a ser feita de forma muito consistente e com mobilização da sociedade civil, incluindo nas redes sociais”, considera Sandra Fernandes.
A rede internacional de fact-checking (IFCN), da qual faz parte o Polígrafo, criou o site “Ukraine Facts” com o objetivo de desmontar as notícias falsas que surgem diariamente na Internet.
Ainda é cedo para saber quem serão os vencedores e derrotados deste conflito no terreno, mas já se sabe isto: “O elemento da comunicação política e social vai ter um peso no desfecho da guerra, porque tem impacto no posicionamento dos países, sobretudo os países democráticos”, resume Nelson Ribeiro.
https://zap.aeiou.pt/guerra-mediatica-propaganda-russa-aposta-no-medo-e-ucrania-conquista-opiniao-publica-465379