No casamento da socialite peruana foi realizada uma dança indígena com homens amarrados entre si, e mulheres sentadas no chão com longas tranças, enquanto simulavam fazer artesanato, segundo o Observador.
Este foi o cenário do casamento de Belén Barnechea, filha do ex-candidato presidencial peruano Alfredo Barnechea, e Martín Cabello de los Cobos, neto do Conde de Fuenteblanca de Espanha.
Estas e outras performances do casamento estão a causar uma onda de indignação em vários quadrantes, desde historiadores até ao governo espanhol.
Após as críticas relativas ao casamento de 9 de abril em Trujillo, Belén Barnechea viu-se “obrigada” a responder e justificou o desfile como uma amostra “do quão maravilhoso e culturalmente rico” é o seu país.
Trome, o tabloide mais lido do Peru, fez do assunto a manchete do seu site e, com o passar das horas, vídeos espalharam-se nas redes sociais e tornaram-se virais.
“Somos um país cheio de diversidade, culturas e tradições diferentes que souberam conviver e unir-se num sincretismo único no mundo. Em todos os dias de celebração ensinamos com amor e respeito algo sobre o Peru, sobre a nossa cultura, sobre a minha cultura”, disse a recém-casada no Instagram, figura do jet set nacional.
“Vi que alguns meios de comunicação se referiram à representação Moche que fizemos como sendo de escravos, de mulheres indígenas, do vice-reinado. O que fizemos foi retratar a cultura Moche que se desenvolveu entre os séculos II e VII. Por isso, nunca se cruzou com os Incas nem com os espanhóis”, acrescentou a empresária, conhecida como “la repostera de la jet” devido à sua profissão e amizade com figuras de alta sociedade madrilena e europeia.
O gabinete antirracismo do Ministério da Cultura de Espanha pediu aos cidadãos que promovam a “diversidade cultural, expressa através da identidade, línguas e culturas”, para eliminar a discriminação étnico-racial, em comunicado, esta quinta-feira.
Barnechea assegurou que o cortejo nupcial “foi uma recriação da danza de la soga [dança da corda, em tradução livre], uma dança ancestral que não representa os escravos, mas sim um ritual dos guerreiros“.
José Ragas, historiador peruano, sublinhou que não se pode colocar o rótulo “ancestral” à famosa danza de la soga, em entrevista ao El País.
“Embora seja verdade que se trata da interpretação de uma aparente dança ancestral regional, o contexto em que ocorreu — uma boda de elite — com alguém da nobreza de um país como Espanha, pode levar a outras interpretações”, realça Ragas.
“É uma representação reinventada, não necessariamente fidedigna, e que pode terminar a ‘exotizar’ a população”, acrescentou o também professor da Universidade Católica do Chile, e investigador em estudos do colonialismo.
“Qual é a relevância de encenar a prática de exibir o vencido numa batalha? É um ato humilhante: a corda seria o instrumento de domínio e conquista com que o amarravam. Se quisesses mostrar-te orgulhosa, participarias na encenação, mas se não te comprometes com o outro ou não o incluis — na festa—, não sabes e acabas a fazer estas coisas: justificas-te, sem entender as objeções“, criticou Sonaly Tuesta, ex-vice-ministra de Património Cultural, citada também pelo jornal espanhol.
Para Tuesta, que passou 20 anos a documentar festividades tradicionais na televisão estatal, teria sido “interessante” se o casamento em vez de fazer do povo Moche “uma decoração”, tivesse tido um momento de partilha.
Barnechea explicou que as mulheres sentadas no chão “simbolizaram os trabalhos e as formas de cultivo da terra na época”, ainda na publicação do Instagram.
Mas Guillermo Rebaza, advogado e administrador cultural de Trujillo, cidade onde nasceu a mãe da noiva e onde existem elementos de arquitetura colonial, não entende isso da mesma forma.
“É impossível perder de vista as circunstâncias sociais e políticas em que vivemos, facto que por si só torna esta representação condenável, sobretudo porque vem de uma elite, a neo oligarquia nacional, que continua a olhar com acentuado desprezo para os setores populares”, insiste o advogado.
Chirapaq, a organização não governamental de defesa dos direitos dos povos andinos, salientou que a diversidade cultural é um valor “desde que os envolvidos interajam de igual para igual”.
“As personagens indígenas e afro-peruanos eram apenas decoração. Não falam, não bebem nem comem, não se divertem com os convidados, não vivem”, esclareceu a Chirapaq, numa publicação no Twitter.
“Há histórias que documentam de forma semelhante a entrada dos vice-reis em Lima e noutras partes da colónia: o público em submissão, a exibição de trajes, frutas, sementes, ouro e prata, e a pompa que seguia pelas ruas e pelas praças”, descreveu a ONG, com uma pintura da época do vice-reinado peruano (1540-1821).
A cantora peruana Susana Baca, três vezes vencedora do Grammy Latino, afirma que não compreende a relação entre “um infame facto histórico da humanidade que é a escravatura e a colónia vexatória com um ato de celebração supostamente de amor”.
O Governo espanhol já tinha alertado para “a banalização da História por alguns setores sociais”, enquanto era ministra da Cultura.
Baca lamenta que esta seja outra amostra do estado de “decadência política”, com “os de cima a humilhar os de baixo”, num texto publicado este sábado no Facebook. “É como relembrar o holocausto numa festa de aniversário“, lê-se.
“Mas, além disto, devo desejar a este casal que se une com amor muita felicidade”, acrescentou Baca, horas depois, através de outra publicação na mesma rede social.
Os noivos também dançaram “reggaetón” com “tocados” dourados, semelhantes aos encontrados nos túmulos do Senhor de Sipán e do Senhor de Sicán (descobertas arqueológicas dos anos 80 e 90). Assemelhavam-se aos dos antigos chefes Moche.
Este foi outro dos momentos polémicos da celebração do casamento, tal como se pode ver no vídeo da revista Hola, ao primeiro minuto e 30 segundos.
https://zap.aeiou.pt/desfile-de-escravos-em-casamento-no-peru-gera-polemica-sao-os-de-cima-a-humilhar-os-de-baixo-474220