“Putin sabia que tinha o poder para conquistar a Ucrânia”, mas não contava com a resistência heroica dos ucranianos que está a “ganhar a admiração do mundo todo” e “a ganhar a guerra”. A análise é do historiador e professor israelita Yuval Noah Harari num artigo para o jornal britânico The Guardian intitulado “Porque é que Vladimir Putin já perdeu esta guerra”.
“Os russos ainda podem conquistar a Ucrânia toda”, mas para ganhar a guerra, teriam de “segurar a Ucrânia”, o que parece “altamente improvável”, escreve ainda o autor do best-seller internacional “Sapiens: Uma breve história da humanidade”.
Harari sublinha que o “sonho” de Putin de “reconstruir o império russo assentou sempre na mentira de que a Ucrânia não é uma nação real” e de que “os ucranianos não são um povo verdadeiro”, mas que, no fundo, “anseiam pelo Governo de Moscovo”.
Ora, os últimos dias, provaram precisamente o contrário. Os ucranianos estão dispostos a defender a sua pátria, mesmo sabendo do poderio militar do inimigo.
“Só queremos viver no nosso país”
“Só queremos viver no nosso país”, conta ao New York Times (NYT) a professora Julia que, entre lágrimas e enquanto se prepara para ir para a linha de combate em Kiev, conta a uma jornalista deste diário que sabe usar “um pouquinho” uma arma, pois só “há dois dias” é que começou a aprender.
“É horrível”, desabafa ainda, confessando que “claro” que tem medo, mas que há um valor maior que se levanta.
Por toda Ucrânia, há agricultores, taxistas, donos de lojas, homens e mulheres comuns, a pegarem nas armas para lutar contra os russos. Muitos ucranianos têm aprendido a fazer “cocktails molotov”, ou seja, explosivos, para atirarem contra os soldados invasores.
Pelo meio, há também pequenas provocações que tomam conta das redes sociais como as imagens que mostram um agricultor a rebocar um camião militar russo.
Campeões de boxe na linha da frente da guerra
Mas, além dos anónimos, várias figuras do desporto ucraniano estão a juntar-se às fileiras militares que lutam contra os russos. Os irmãos Klitschko, famosos campeões de boxe, são um destes exemplos.
“Defenderei Kiev abraçando as armas”, anunciou nas redes sociais, salientando que sabe “atirar com quase qualquer arma” e deixando um aviso aos russos: “Não vai ser um passeio no parque, vai custar-lhes caro, não vamos desistir”, promete.
O actual campeão do mundo de boxe, Oleksandr Usyk, também já anunciou que vai lutar pelo seu país. “É hora de unirmo-nos”, refere no Instagram, apelando ao “povo russo”. “Se vocês nos consideram irmãos ortodoxos, não deixem os vossos filhos e o vosso exército irem para o nosso país, não lutem contra nós“, salienta, pedindo a Putin para “parar esta guerra”.
Outro campeão de boxe, Vasyl Lomachenko, que venceu o ouro olímpico, em 2012, nos pesos leves, suspendeu a carreira para ir lutar de arma em punho. Já foi destacado para o Batalhão de Defesa Territorial Belgorod-Dnestrovsky.
“Será muito difícil resistir por muito tempo”
O tenista Sergiy Stakhovsky, actual 240º do mundo, também anunciou que pretende juntar-se à luta, apesar de não ter experiência de combate.
“Inscrevi-me no exército de reserva”, revelou à Sky Sports. “Não tenho experiência militar, mas já usei uma arma”, acrescentou. “Vamos resistir, mas a Rússia é um país de 140 milhões de pessoas que se estende da Europa ao Alasca, será muito difícil resistir por muito tempo“, notou ainda Stakhovsky.
Também o nadador e medalhado olímpico Mykhailo Romanchuk, que vive nos arredores de Kiev, não quis deixar o país porque quer “lutar até ao fim”, revelou o seu amigo e adversário Gregorio Paltrinieri citado pela imprensa italiana.
O biatleta Dmytro Pidruchnyi, campeão mundial em 2019, e o esquiador Dmytro Mazurtsjuk que esteve nos Jogos Olímpicos de Inverno, revelaram a um site norueguês que têm estado na linha da frente a ajudar a defender Kiev, auxiliando “a reforçar a estrutura defensiva e a construir barricadas e fortificações”.
O ex-ciclista Andrei Tchmil, de 59 anos, que representou as cores da ex-União Soviética, depois da Rússia e a seguir da Moldávia e da Ucrânia, também anunciou que vai combater, mesmo que, actualmente, tenha a nacionalidade belga e viva em território moldavo.
Já morreram atletas em combate
Entretanto, foi noticiada a morte do atleta de biatlo Yevgeny Malyshev, de apenas 19 anos. Terá morrido num combate com soldados russos nas imediações da cidade de Kharkiv, segundo a Federação de Biatlo da Ucrânia.
O futebolista Vitalii Sapylo, jogador de 21 anos do Karpaty, também morreu num combate perto de Kiev, segundo já confirmou a Federação de Futebol da Ucrânia.
Já o avançado Dima Martynenko, jogador de futebol de 25 anos, foi vítima de um bombardeamento que atingiu a sua casa, morrendo ao lado da mãe. A sua irmã de apenas 7 anos também ficou gravemente ferida, segundo os relatos da imprensa.
“Não sou ucraniano. Sou humano”
Mas os voluntários que querem ajudar a Ucrânia contra a Rússia chegam até do estrangeiro. O comediante e estudante universitário canadiano Anthony Walker é um deles.
Apesar de não ter experiência militar, o jovem de 29 anos e com três filhos viajou para a fronteira entre a Polónia e a Ucrânia e quer pegar nas armas, como conta à BBC.
“Não tenho laços com a Ucrânia. Não sou ucraniano. Sou humano. Penso que é uma razão boa o suficiente para vir para aqui”, realça. “Se fosse com o Canadá, também íamos querer que nos ajudassem”, diz ainda.
Walker é apenas um de vários voluntários de outros países, como Reino Unido, Coreia do Sul e EUA, que cederam ao apelo do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que pediu a todos os não-ucranianos para se juntarem ao país “na defesa da segurança na Europa“.
“Esta não é apenas a invasão da Rússia à Ucrânnia, é o início de uma guerra contra a Europa. Contra a unidade europeia”, frisou Zelensky no seu apelo.
Não há dados exactos, mas o Embaixador da Ucrânia no Reino Unido, Vadym Prystaiko, disse à BBC que há um número “esmagador” de estrangeiros a “pedir permissão para lutar” pela Ucrânia.
Zelensky: de comediante a herói nacional
O grande impulsionador deste patriotismo dos ucranianos, mas também do movimento de apoio dos estrangeiros ao país, foi Zelensky. O antigo actor e comediante soube como usar as redes sociais para se tornar no grande líder do povo ucraniano contra a tirania de Putin.
Zelensky tem aparecido de uniforme militar, fazendo questão de garantir que não deixou a Ucrânia apesar de ser o alvo “número um” dos russos. Uma decisão muito elogiada quando pensamos, por exemplo, no recente caso do Afeganistão, onde o presidente Ashraf Ghani fugiu de Kabul face à aproximação dos talibãs, o que acabou por desmoralizar o que restava do exército do seu país.
“Preciso de munições, não de uma boleia”, terá dito Zelensky aos EUA que se ofereceram para o retirar da Ucrânia.
Além disso, Zelensky conseguiu convencer os líderes europeus a endurecerem as sanções contra a Rússia. Até nações mais relutantes como Alemanha, Itália e Hungria acabaram por ceder.
“Esta pode ser a última vez que me vão ver vivo”, disse o líder ucraniano num Conselho Europeu, por video-conferência, em declarações vistas como decisivas.
Nesta terça-feira, em Genebra, durante a Conferência da ONU sobre o Desarmamento, os representantes de toda a União Europeia deixaram a sala quando o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov, apareceu para falar por video-conferência.
Depardieu pede ao amigo Putin para “parar armas”
Mas até entre os próximos de Putin há cada vez mais apelos à paz. O actor francês Gérard Depardieu que tem cidadania russa desde 2013 e que tem uma relação próxima com o presidente russo, já se manifestou “contra esta guerra fratricida” e pediu a Putin para “parar as armas e negociar”, conforme declarações à AFP.
A modelo russa Irina Shayk também se manifestou contra a guerra, anunciando que vai fazer doações à UNICEF e à Cruz Vermelha da Ucrânia. “A orar pela paz no mundo”, escreveu ainda no seu Instagram.
Em plena Rússia, e apesar dos riscos de detenção, muitos anónimos têm-se manifestado contra a guerra. A polícia deteve centenas de pessoas, segundo o NYT, em São Petersburgo depois de um protesto.
A jornalista russa Elena Chernenko anunciou que foi excluída da cobertura das conferências de Lavrov por ter começado uma petição contra a guerra junto de colegas de profissão, como avança o The Moscow Times.
Além de várias petições que pedem a paz na Ucrânia e das posições de médicos, enfermeiros e paramédicos, também figuras das artes e da cultura russas, incluindo actores e realizadores, assinaram uma carta aberta a sublinhar que “forçar a paz através do uso da força é absurdo”.
O jornalista russo Dmitry Muratov, vencedor do Prémio Nobel da Paz de 2021 e editor-chefe do jornal de oposição Novaya Gazeta, lamenta que os russos “estão a sofrer”, não apenas pela guerra, mas também pela “vergonha” devido aos actos de Putin.
E até os parlamentares comunistas que votaram pelo reconhecimento das regiões separatistas da Ucrânia criticam a invasão generalizada do país.
“Votei pela paz, não pela guerra. Votei para a Rússia ser um escudo… não para Kiev ser bombardeada”, nota o deputado Mikhail Matveyev citado pelo The Moscow Times.
Nas redes sociais, muitos russos têm manifestado a sua oposição à guerra, entre celebridades, jornalistas e bloggers.
Entretanto, por todo o mundo, sucedem-se os gestos de solidariedade para com o povo ucraniano.
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