O reforço do enviesamento conservador no Supremo Tribunal dos Estados Unidos durante o mandato de Donald Trump já colheu frutos com a inacção do órgão judicial perante a lei do aborto no Texas. A decisão do Supremo em Dezembro sobre uma lei semelhante no Mississipi pode ditar o seu fim definitivo.
O poder está dividido nos órgãos legislativos, executivos e judiciais, que são independentes entre si, certo? Errado, pelo menos nos Estados Unidos. Esta divisão que todos aprendemos na escola não se aplica na práctica no país mais poderoso do mundo, onde a politização dos tribunais, especialmente do Supremo, está à vista para todos, e pode agora ser decisiva no futuro do direito à interrupção voluntária da gravidez.
Havia já um precedente jurídico com quase 50 anos, mas isso não impediu que a lei no estado do Texas que proíbe o aborto depois das seis semanas de gravidez avançasse – e esse avanço deveu-se à inacção do Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que não agiu perante um recurso de emergência para proibir a lei.
A 1 de Setembro, o Supremo justificou a sua decisão dizendo que não isto não significa que a lei do Texas seja constitucional, mas que apenas não aceitou o pedido de emergência em causa. No entanto, este argumento não chega para os activistas que temem que o direito ao aborto nos EUA esteja perto do fim.
Em causa está o caso Roe v. Wade, uma decisão judicial de 1973 em que o Supremo abriu um precedente ao reconhecer o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG) até ao ponto em que o feto é viável, o que acontece geralmente entre as 24 e 28 semanas.
A actual maioria conservadora de 6-3 do Supremo é a razão para o avanço da lei texana, mas primeiro é preciso entender como o tribunal funciona e como se chegou a esta diferença entre liberais e conservadores neste órgão judicial.
Nos Estados Unidos, a função dos nove juízes do Supremo é avaliar a constitucionalidade das leis. O cargo é vitalício e nunca vai a votos precisamente para assegurar que os juízes possam tomar decisões neutras apenas base na Constituição e para evitar que os seus pareceres sejam influenciados pela vontade popular ou por lobbys que façam doações para as campanhas eleitorais, como acontece no Congresso, no Senado e nas Presidenciais.
No entanto, a instrumentalização política do Tribunal acaba por acontecer na mesma já que quando algum juiz se demite ou morre, o sucessor é escolhido pelo Presidente, que tende a escolher candidatos cujo histórico de decisões mostre se é mais conservador ou mais liberal. O Supremo é também um tema constante nas campanhas eleitorais e é usado como um argumento para convencer eleitores indecisos.
Quando o Presidente faz a escolha, o Comité Judiciário do Senado reúne-se para analisar os candidatos, seguindo-se uma audição que pode durar alguns dias. No final, o Comité dá o seu parecer favorável ou desfavorável ao resto do Senado, que repete um processo parecido e leva o candidato a votos perante os 100 Senadores. Se for aprovado, o nomeado torna-se membro do Supremo.
Visto que cargo no Supremo Tribunal é vitalício, o timing das mortes ou demissões dos juízes acaba por poder influenciar as decisões judiciais durante décadas dependendo do Presidente a quem cabe fazer as novas escolhas – e essa é uma arma que os Republicanos não têm tido medo de usar, escolhendo juízes jovens e garantindo o controlo do Supremo durante um geração.
Nas eleições intercalares de 2014, os Republicanos assumiram controlo do Senado e um homem em específico tornou-se uma das maiores dores de cabeça para Barack Obama: Mitch McConnell, Senador do Missouri que se tornou líder da maioria Republicana da câmara superior do Congresso e, mais tarde, um dos maiores aliados de Trump, apesar da relação dos dois já ter visto melhores dias.
Após a morte do juiz Antonin Scalia em 2016, um dos mais conservadores do Supremo, Barack Obama apontou como substituto Merrick Garland – o actual procurador-geral de Joe Biden e uma escolha mais liberal -, mas McConnell recusou sequer levar a nomeação do Presidente Democrata a votos.
O argumento usado? 2016 era um ano de eleições, por isso devia ser dada a oportunidade aos americanos de escolher o próximo Presidente e deixar a cargo desse novo chefe de Estado a escolha do próximo juiz. Mal Donald Trump assumiu a presidência em Janeiro de 2017, Neil Gorsuch, a sua escolha para substituir Scalia, foi aprovada.
No entanto, McConnell contrariou o próprio argumento meras horas depois da morte de Ruth Bader Ginsburg no ano passado. O Senador e grande aliado de Trump garantiu que ia deixar o Presidente escolher um novo juiz, apesar de 2020 também ser um ano de eleições e da morte de RBG ter sido ainda mais perto do sufrágio do que a de Scalia.
Em 115 juízes que já integraram o Supremo, apenas 37 propostas dos chefes de Estado não foram aprovadas, tendo 11 destas sido rejeitadas pelo Senado, o que mostra o abalo que o bloqueio de McConnell causou nas convenções políticas.
A influência de Trump no sistema judicial norte-americano não se limita ao Supremo, já que Mitch McConnell também deixou na gaveta as escolhas de Obama para os tribunais de recurso, que ouvem mais de 50 mil casos por ano contra os menos de 100 do Supremo. Os juízes são também vitalícios e têm de ser aprovados no Senado.
Um dos mais mediáticos é o Tribunal do Nono Circuito, que foi alvo de críticas de Trump depois de ter bloqueado algumas das suas medidas mais polémicas, como o impedimento da entrada de muçulmanos nos EUA ou o financiamento de emergência para a muralha. Devido aos bloqueios de McConnell, Trump nomeou 10 dos 29 juízes que integram o Nono Circuito, enquanto Obama escolheu apenas sete nos seus dois mandatos.
Para além dos tribunais de recurso, existem também os tribunais de distrito. O perfil dos juízes de Trump é também mais radicalmente conservador, já que os seus antecessores Republicanos escolheram alguns magistrados liberais devido a uma convenção informal que obrigava ao diálogo entre os partidos.
A regra ditava que o Senado não aprovava as escolhas se os dois Senadores do Estado em questão não gostassem do nomeado. Ou seja, supondo que os dois Senadores Democratas californianos não gostavam da escolha do Presidente para um tribunal da Califórnia, o Senado não aprovava o nomeado e o chefe de Estado tinha de escolher uma alternativa.
McConnell ignorou esta tradição e o Senado Republicano aprovou escolhas de Trump mesmo que os Senadores fossem contra – o que permitiu que o Presidente enviesasse completamente o sistema judicial para os conservadores em apenas quatro anos.
“Quando assumi a Presidência, tinha mais de 100 juízes nos tribunais federais por escolher. Foi como um grande e bonito presente para todos nós“, disse Donald Trump.
Apesar dos Republicanos não controlarem o Senado actualmente, caso o partido o recupere nas intercalares do próximo ano e McConnell volte à presidência, há a possibilidade de voltar a bloquear escolhas de Biden para o Supremo num ano de eleições, tal como fez com Obama mas não fez com Trump.
Numa entrevista ao Politico, McConnell disse que está mais preocupado com as eleições de 2022 do que com o que poderá eventualmente acontecer em 2024, mas também não fechou a porta a um bloqueio a Biden. “Não excluo qualquer opção sobre como lidar com nomeações se estiver numa posição de maioria”, respondeu.
Pode o toma-lá-dá-cá político no Supremo pôr em causa a sua legitimidade?
Se as políticas dos conservadores podem ser debatidas, uma coisa não se põe em questão: não têm medo de usar ao máximo o poder a seu favor, mesmo que isso vá contra convenções já estabelecidas nos corredores políticos dos Estados Unidos e são tremendamente eficazes na implementação da sua agenda.
Esta abordagem agressiva dos Republicanos tem levado a muitos apelos, especialmente da ala mais progressista, a que os Democratas, que se encaram como um partido mais civilizado e diplomático, também descalcem as luvas e assumam estratégias mais duras.
Na altura da nomeação apressada após a morte de Ruth Bader Ginsburg, David Sirota, jornalista progressista e ex-crítico mediático da campanha de Bernie Sanders, explicou ao NPR que os Democratas tinham poder para tentar atrasar o processo e que seria “completamente doido” não o usar.
Sirota lembrou que já não já não se aplica o filibuster – uma regra que permite que uma minoria de 41 Senadores efectivamente governe ao poder bloquear as votações, o que tem causado muitos impasses políticos nos últimos anos – no caso da confirmação de juízes, mas que haveria outros “procedimentos parlamentares” que pudesse atrasar a confirmação de Coney Barrett.
Recorde-se que o fim do filibuster para as nomeações para o Supremo, conhecido como a “opção nuclear”, foi inicialmente introduzido pelos Democratas em 2013, que estavam fartos de ver as suas escolhas de Obama bloqueadas por uma minoria Republicana.
No entanto, o tiro saiu pela culatra quando McConnell, que tinha criticado a mudança em 2013, fez a mesma coisa para assegurar a aprovação de Gorsuch, usando a decisão anterior como um precedente.
“O Senado funciona num sistema de consentimento unânime, o que significa que cada Senador define os procedimentos normais que podem acontecer a cada dia. E cada Senador pode opor-se a isso”, afirmou Sirota, sugerindo também que se os Democratas “lutassem a sério” contra os Republicanos, isso poderia a apoiar o caso de uma “expansão do tribunal”. No entanto, isso ainda não aconteceu.
Já Aaron Belkin, director de um grupo de activistas chamado Take Back the Court que defende que os Democratas adoptem o mesmo “jogo duro constitucional” que os Republicanos, usando tácticas que são legais mas que quebram com tradições de fair play partidário centenárias.
No Boston Globe, o activista explica os candidatos Democratas podem falar quanto quiserem de propostas como aumentar os impostos sobre os ricos ou expandir o sistema de saúde, mas que isso não vai dar em nada enquanto os Republicanos usarem o filibuster ou o Supremo para matarem qualquer lei progressista. “A casa está literalmente a arder e ninguém está a falar sobre isso”, afirma.
A opção mais falada pelos progressistas é a do alargamento do tribunal, o que efectivamente anularia a maioria conservadora, passando-se de nove para 13 juízes. Joe Biden já namoriscou com a ideia, criando em Abril uma comissão para avaliar a hipótese e também a possibilidade de se criarem limites de termos para os juízes.
Kamala Harris e Pete Buttigieg, na altura candidatos nas primárias Democratas e agora ambos membros da administração de Biden, também disseram que estavam abertos a alargar o Supremo. Biden não se mostrou um apoiante da ideia, mas também não a descartou completamente.
Este toma-lá-dá-cá político no Supremo pode também fazer estragos na legitimidade pública do maior tribunal dos EUA. A taxa de aprovação do órgão, que costuma oscilar entre os 50% e 60%, o valor muito superior ao do Congresso e geralmente também ao do Presidente, mas essa taxa está agora no seu valor mais baixo em décadas.
“A controvérsia sobre as nomeações recentes, as ameaças de alargamento do tribunal e os sussurros de que certos precedentes estão prestes a ser revertidos têm colocado o tribunal sob mais atenção e ameaçado a sua legitimidade. E a autoridade final do tribunal depende da sua legitimidade. Se o tribunal for visto como demasiado político, vai perder este precioso recurso”, nota o The Conversation, que acrescenta que reverter o Roe v. Wade iria expor o Supremo como uma “instituição que faz leis em vez de as interpretar”.
Já o juiz liberal Stephen Breyer disse recentemente que se vai reformar e que não quer morrer como membro do Supremo, o que poderá causar uma nova guerra para o substituir.
Os Democratas têm apelado a que Breyer o faça enquanto o partido controla o Congresso e a Casa Branca. No entanto, Breyer não deu uma data específica, mas disse que vai ter em conta o contexto político de quando se vai reformar.
O juiz mostra-se também contra a possibilidade de alargamento do Supremo. “Se um partido poderia fazê-lo, então parece-me que o outro partido poderia fazê-lo também. Na superfícia, acho que quando se começa a mexer nestas coisas, as pessoas vão perder a confiança no tribunal“, revelou em entrevista à Fox News.
O futuro do direito ao aborto
Já há algum tempo que vários estados Republicanos estavam a desafiar legalmente o direito ao aborto nos EUA. Em 2019, a Georgia, o Kentucky, o Louisiana, o Missouri, o Mississippi, o Ohio, o Louisiana, o Utah, o Arkansas ou o Alabama – começaram aprovar leis que limitavam o acesso ao aborto, várias com o mesmo critério das seis semanas usado na legislação que já avançou no Texas.
Este ano, o Idaho, o Oklahoma e a Carolina do Sul também aprovaram leis semelhantes, que ainda não entraram em vigor por terem sido desafiadas em tribunal. Desta forma, o Texas tornou-se o primeiro estado a, na práctica, proibir o aborto, já que a grande maioria das mulheres ainda não sabe que está grávida às seis semanas de gestação.
A lei no Texas proíbe também a interrupção das gravidezes em casos de violação e incesto e inclui a particularidade de dar aos cidadãos o poder para a colocar em práctica, ilibando os políticos e funcionários públicos no Texas de responsabilidades por imporem o cumprimento de uma lei que pode vir ainda a ser revertida e declarada inconstitucional.
Agora, qualquer cidadão, incluindo aqueles que não vivem no Texas, pode processar qualquer mulher que faça um aborto e qualquer pessoa que a ajude no processo, como os médicos ou até um motorista da Uber que a leve à clínica, mesmo que desconheça o propósito da viagem.
Os condenados terão de pagar 10 mil dólares (cerca de 8500 euros) mais os custos judiciais se ficar provado em tribunal que auxiliaram alguém na realização de um aborto, mas os queixosos não têm de pagar nada caso percam o processo.
Encorajados pela maioria conservadora no Supremo e na esperança que os processos chegassem até este tribunal e levem a uma revogação do Roe v. Wade, os estados mais conservadores têm avançado com estas leis.
Uma possível decisão final do Supremo pode estar mais perto agora que o médico Alan Braid, que admitiu que quebrou a lei no Texas e fez um aborto num artigo no Washington Post, foi processado por dois cidadãos de fora do estado, um no Illinois e outro no Arkansas.
O Supremo anunciou também que vai analisar a 1 de Dezembro a lei no Mississipi, que proíbe o aborto após as 15 semanas. Esta proposta chega ao maior tribunal dos EUA depois de já ter sido chumbada por tribunais inferiores – mas a simples escolha do Supremo de aceitar avaliar a sua constitucionalidade já é um mau agoiro para os defensores do aborto.
Resta agora aguardar pela decisão final – o debate pode finalmente chegar ao fim caso os juízes confirmem as decisões dos tribunais inferiores e defendam o precedente da decisão de 1973, ou então pode esperar-se ainda mais polémica sobre a politização do Supremo caso o direito ao aborto seja revogado.
https://zap.aeiou.pt/legado-trump-supremo-geracoes-futuro-aborto-431435
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